terça-feira, junho 14, 2005

Adeus

Já gastámos as palavras pela rua,meu amor,
e o que nos ficou não chega
para afastar o frio de quatro paredes.
Gastámos tudo menos o silêncio.
Gastámos os olhos com o sal das lágrimas,
gastámos as mãos à força de as apertarmos,
gastámos o relógio e as pedras das esquinas
em esperas inúteis.

Meto as mãos nas algibeiras e não encontro nada.
Antigamente tínhamos tanto para dar um ao outro;
era como se todas as coisas fossem minhas:
quanto mais te dava mais tinha para te dar.
Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes.
E eu acreditava.
Acreditava,
porque ao teu lado
todas as coisas eram possíveis.

Mas isso era no tempo dos segredos,
era no tempo em que o teu corpo era um aquário,
era no tempo em que os meus olhos
eram realmente peixes verdes.
Hoje são apenas os meus olhos.
É pouco mas é verdade,
uns olhos como todos os outros.

Já gastámos as palavras.
Quando agora digo: meu amor,
já não se passa absolutamente nada.
E no entanto, antes das palavras gastas,
tenho a certeza
de que todas as coisas estremeciam
só de murmurar o teu nome
no silêncio do meu coração.

Não temos já nada para dar.
Dentro de ti
não há nada que me peça água.
O passado é inútil como um trapo.
E já te disse: as palavras estão gastas.


Adeus.


Eugenio de Andrade

3 Comments:

Por volta das 3:45 da tarde, Anonymous Anónimo achou que...

Então e ninguem se lembra do cavalo branco? Epa, era comuna mas foi importante para Portugal... Falou quando mais ninguem ousava sequer pensar. Bem, enfim.. morrem que nem tordos.

 
Por volta das 9:03 da tarde, Anonymous Anónimo achou que...

Excelente escolha, satanhoco...pura verdade em palavras certeiras e singelas, que nada mais fazem do que nos questionar sobre o sentido de certos longos ou curtos instantes...


Quanto ao comuna, se as palavras que deixou não serão imortalizadas a cada renovada leitura, não será certamente esquecida a cabeleira branca e a sobrancelha severa (não de comer criançinhas, mas de lutar pelos seus mais genuínos ideais).

Ao poeta e ao camarada o mais sincero e português adeus

 
Por volta das 9:35 da tarde, Anonymous Anónimo achou que...

Vem dos lados do rio, as mãos fresquíssimas, algumas gotas de água ainda nos cabelos. Com a manhã chega o anónimo respirar do mundo. Um cheiro a pão fresco invade o pátio todo. Vem dos lados do rio: para levar à boca, ou ao poema.

E.Andrade

 

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